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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Sobre BAUMAN

ZYGMUNT BAUMAN sociólogo polonês, professor emérito da Universidade de Leeds e de Varsóvia. Dedica-se a retratar as desastrosas conseqüências sociais de uma modernização
que privilegia apenas uma minoria. Prestes a completar 80 anos, o autor está mais ativo do que nunca, analisa a fluidez dos relacionamentos amorosos, compara a vida em sociedade ao "Big Brother", critica o combate militar ao terrorismo, comenta o "jeitinho brasileiro" e nega o rótulo de pessimista: "Acredito fortemente que um mundo alternativo seja possível", diz ele. Aponta uma crise aguda da indústria de remoção de refugo humano. Diz que é possível criar mecanismos de inclusão dos seres humanos "excessivos" e "redundantes", e que a modernização implica, necessariamente, uma "lixeira humana"

Esse excesso de população precisa ser ajudado a retornar ao convívio social assim que
possível. Eles são o "exército reserva da mão-de-obra" e lhes deve ser permitido
que voltem à vida ativa na primeira oportunidade. Os "redundantes" são
obrigados a conviver com o resto da sociedade, o que é legitimado pela
capacidade de trabalho e consumo. Em vez de permanecer, como era visto
anteriormente, como um problema de uma parte separada da população, a designação
de "lixo" torna-se a perspectiva potencial de todos. Há partes do mundo que se
confrontaram com o antes desconhecido fenômeno de "população sobrando". Os
países subdesenvolvidos não se disporiam, como no passado, a receber as sobras
de outros povos e nem podem ser forçados a aceitar isso.

Países como Brasil, Índia e China são constantemente apontados como estratégicos para o
século XXI. Ao mesmo tempo, são três países com grande número de "lixo humano", com alto índice de desemprego. Isso não é uma contradição? Certamente. Fica ainda pior quando os tais gigantes, entram no "processo de modernização". O número de "pessoas desnecessárias" crescerá. E aí há o grande problema que mais cedo ou mais tarde enfrentaremos: capacitá-los ou não, a imitar o modelo de "bem-estar" adotado nos Estados Unidos em uma época em que "modernização" ainda era um privilégio de poucos. Para dar vazão, seriam necessários três planetas, mas nós só temos um para dividir.

Um dos mais importantes compositores brasileiros, Chico Buarque de Holanda, afirmou que "uma nação grande e forte é perigosa, porém uma nação grande, forte e ignorante é ainda mais perigosa". Ter uma nação grande, forte e ignorante no comando do mundo como parecem ser os EUA da Era Bush pode acirrar ainda mais o "refugo" dos seres humanos. Lamento não conhecer Chico Buarque: ele toca no cerne da questão. Até onde vai a situação de nosso planeta com um único superpoder, confundido e subjugado pela ilusão de sua repentina ilimitada liberdade. A elevação súbita dos EUA à posição de superpotência absoluta e uma incontestada hegemonia mundial pegou líderes políticos americanos e formadores de opinião desprevenidos. É muito cedo para declarar a natureza deste novo império e generalizar seu impacto no planeta. Seu comportamento é, possivelmente, o fator mais importante da
incerteza definida como "Nova Desordem Mundial". Um império estabelecido pela guerra tem que se manter por guerras. Acabamos de ver isso no Iraque, apesar de todos saberem que era óbvio que bombardear e invadir o país não aniquilaria o terrorismo.

No Brasil, há uma expressão muito popular, "jeitinho brasileiro", que representa a capacidade do povo de superar adversidades, sejam elas pequenos problemas do cotidiano ou não. Há nações com seres "redundantes" que saibam sobreviver melhor do que outros. O que chamam de "jeitinho brasileiro" é a maneira que a modernização nos obrigou a reagir. Um dos resultados cruciais da modernização é a dependência dos processos da vida humana pelos "jeitinhos". Isso implica o outro lado da mesma moeda: a vulnerabilidade crescente dos legítimos modos instruídos de viver.

Aos 80 anos, produção intelectual ainda é grande. O que o motiva a continuar escrevendo? Pierre Bourdieu ressaltou que o número de personalidades do cenário político que podem compreender e articular expectativas e demandas está encolhendo. Precisamos aumentá-lo, e isso só pode ser feito apresentando problemas e necessidades. O próximo século pode ser o da catástrofe final ou um período no qual um novo acordo entre os intelectuais e as pessoas que representam a Humanidade seja negociado e trazido à tona. Vamos esperar que a escolha entre estes dois futuros ainda seja nossa.

Todas suas obras apresentam um cenário bastante pessimista do mundo. Temos razão para
acreditar em dias melhores?
Rejeito enfaticamente essa afirmação, ex:
- Otimistas são pessoas que insistem que o mundo que temos é o melhor possível.
- Pessimistas são os que suspeitam que os otimistas possam ter razão.
Portanto eu não sou otimista nem pessimista, porque acredito fortemente que outro mundo, alternativo e quem sabe melhor, seja possível. Acredito que os seres humanos sejam capazes de tornar real essa possibilidade.

Autor dos best-sellers:- O mal-estar da pós-modernidade - A globalização negativa cumpriu sua tarefa. As fronteiras que já foram abertas para a livre circulação de capital, mercadorias e informações não podem ser fechadas para humanos. Podemos prever que quando os atentados terroristas desaparecerem, isso irá acontecer apesar da violência brutal das tropas. O terrorismo só vai diminuir e desaparecer se as raízes sociopolíticas forem eliminadas. Isso exigirá muito mais tempo e esforço do que uma série de operações militares punitivas. A guerra real e capaz de se vencer contra o terrorismo não é conduzida quando as cidades e vilarejos arruinados do Iraque ou do Afeganistão são devastados, mas quando as dívidas dos países pobres são canceladas, os mercados ricos são abertos à produção dos países pobres e quando as 115 milhões de crianças atualmente sem acesso a nenhuma escola são incluídas em programas de educação. A afirmação de alguns acadêmicos que a globalização acabou e que o momento que vivemos agora é de vácuo pós-globalização. “Não sei o que esses "acadêmicos" têm em mente? Até agora, a nossa globalização é totalmente negativa. Todas as sociedades já estão abertas. Não há mais abrigos seguros para se esconder. A "globalização negativa" cumpriu seu papel, mas sua contrapartida "positiva" nem começou a atuar. Esta é a tarefa mais importante em que o nosso século terá que se empenhar. Espero que um dia seja cumprida. É questão de vida ou morte da Humanidade! A civilização moderna não tem tempo nem vontade de refletir sobre a escuridão no fim do túnel. Ela está ocupada resolvendo sucessivos problemas, e principalmente os trazidos pela última ou penúltima tentativa de resolvê-los.

O modo com que lidamos com desastres segue a regra de trancar a porta do estábulo quando o cavalo já fugiu e provavelmente já correu para bem longe para ser pego. E o espírito inquieto da modernização garante que haja um número crescente de portas de estábulos que precisam ser trancadas. Ocasiões chocantes como o 11 de Setembro, o tsunami na Ásia, (o furacão) Katrina, deveriam ter servido para nos acordar e fazer agir com sobriedade. Chamar o que aconteceu em Nova Orleans e redondezas de "colapso da lei e ordem" é simplista. Lei e ordem desapareceram como se nunca tivessem existido.

- Amor líquido - a idéia de durabilidade das relações amorosas nos assusta tanto?
As relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais penosos com que precisamos nos confrontar e solucionar. Nestes tempos líquidos, precisamos da ajuda de um companheiro leal, "até que a morte nos separe", mais do que em qualquer outra época. Mas qualquer coisa "até a morte" nos desanima e assusta: não se pode permitir que coisas ou pessoas sejam impedimentos ou nos obriguem a diminuir o ritmo de vida. Compromissos de tempo indeterminado ameaçam frustrar e atrapalhar as mudanças que um futuro desconhecido e imprevisível pode exigir. Mas, sem esse compromisso e a disposição para o auto-sacrifício em prol do parceiro, não se pode pensar no amor verdadeiro. De fato, é uma contradição sem solução. A esperança ainda que falsa seja que a quantidade poderia compensar a qualidade: se cada relacionamento é frágil, então vamos ter tantos relacionamentos quantos forem possíveis. Quanto mais fácil se torna terminar relacionamentos, menos motivação existe para se negociar ou buscar vencer as dificuldades que qualquer parceria sofre, ocasionalmente. Afinal, quando os parceiros se encontram, cada um traz a sua biografia, que precisa ser conciliada, e não se pode pensar em conciliação sem fazer concessões e auto-sacrifício. No fim das contas é uma questão de escolha, do valor que se dá a estar junto com o parceiro e da força do amor, que torna o auto-sacrifício em prol do amado algo natural, doce e prazeroso, em vez de amargo e desanimador.

- Vidas desperdiçadas - Sociedade fragmentada que não estimula a individualização e o
sentimento de medo ao estranho? Prognóstico assustador: o crescimento incontrolável do "lixo humano", pessoas descartáveis ou "refugadas" - que não puderam ser aproveitadas e reconhecidas numa sociedade cada vez mais seletiva - Nos comportamos exatamente como o tipo de sociedade apresentada nos "reality shows”. A questão da "realidade", como insinuam os programas desse tipo, é que não é preciso fazer algo para "merecer" a exclusão. O que o "reality show" apresenta é o destino e a exclusão é o destino inevitável. A questão não é "se", mas "quem" e "quando". As pessoas não são excluídas porque são más, mas porque outros demonstram ser mais espertos na arte de passar por cima dos outros. Todos são avisados de que não têm capacidade de permanecer porque existe uma cota de exclusão que precisa ser preenchida. É exatamente essa familiaridade que desperta o interesse em massa por esse tipo de programa. Muitos de nós adoptamos e tentamos seguir a mensagem contida no lema do programa: "não confie em ninguém!" Um slogan como esse não prediz muito bem o futuro das amizades e parcerias humanas.

- Identidade (reforça seus conceitos sobre a crise de identidade imposta pela modernização).

Em “Amor Líqüido”, afirma que o amor é hoje identificado pela “racionalidade do consumidor”. O consumismo, como em Baudrillard, é a “bête noire” da sociedade contemporânea. Não tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo. Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é “bom” desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação acaba ou se mostra não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis - como os bens de consumo são ou deveriam ser. Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, nos separamos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos… Na verdade, tendemos a comemorar a substituição!

Mas esse “padrão consumista” é contrário aos princípios que conduzem nossos relacionamentos amorosos. Se for aplicado, torna impossível a relação amorosa realmente satisfatória. Ele envenena a parceria com desconfiança mútua e a enche de constante incerteza quanto às intenções do parceiro. Amplia qualquer desavença mínima a uma proporção gigantesca, dando motivos suficientes para terminar e recomeçar em outro lugar. Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso dinheiro de volta… Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis, quebradiças, não-confiáveis-antes uma fonte de medo, ao invés de alegria.

Em “Vida Líqüida”, sob condições de constante incerteza modificam nossa percepção do mundo político. Incerteza, medo do desconhecido, ameaças imprevisíveis e inomináveis ao corpo humano, propriedade, ao esquema de vida são matéria-prima facilmente reciclada em capital político. A promessa de “ser duro” com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma preferida em disputas políticas. Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os partidos de oposição desenvolvem um “benefício próprio” ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam perceber. Jogar com os sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de dominação política.

Mas até aqui a globalização só mostrou sua natureza negativa. Essa natureza tende a ignorar as soberanias, as leis e os interesses locais da população. E essa natureza negativa quer abolir todos os impedimentos contra suas regras arbitrárias que regem as finanças, o comércio, as máfias, o tráfico de drogas e o terrorismo. As instituições de controle político e legal ainda se mantêm tão locais quanto antes; os braços são muito curtos para alcançar a fonte dos problemas. Poder e política até pouco tempo estavam casados dentro das nações-estado, hoje estão desquitados e, agora, querem o divórcio. Temos cada vez mais políticos sem nenhum controle político.

Fonte: jornal O Globo, 5-11-05 / jornalista italiano Benedetto Vecchi,